Teatro de
transformação
Em seu livro “Campo
feito de sonhos”, Sônia Machado de Azevedo usa experiência junto aos Núcleos
de Artes Cênicas do Sesi para falar do poder transformador do teatro.
Por César Alves
Ao longo de quase duas décadas, Sônia Machado de
Azevedo dirigiu e participou ativamente dos Núcleos de Artes Cênicas do Sesi.
Sua experiência foi a base para desenvolver seu livro Campo feito de sonhos: Os teatros do Sesi, obra que chega às
livrarias sob o selo da coleção Estudos
da Editora Perspectiva. Composto de histórias de vidas transformadas pelo poder
da arte e um amplo programa de serviço social, a obra é testemunho apaixonado do
poder de iniciativas sérias em arte-educação para a inclusão social e
cidadania.
Autora de O papel do corpo no corpo do ator e
de Odete inventa o mar, ambos publicados pela editora Perspectiva, a atriz,
dançarina, diretora, dramaturga, professora de teatro falou com a revista Cenário
sobre o novo livro e a importância da prática teatral como instrumento transformador
de vidas.
“Campo feito de
sonhos” é o resultado de um longo trabalho junto aos Núcleos de Artes Cênicas
do Sesi. A obra nasce como tese. Quando e como surgiu a ideia de transformá-lo
em livro?
Sônia Machado de
Azevedo: A tese –
defendida na USP em 2005 – foi o modo que encontrei de defender e registrar um
dos trabalhos de teatro ligados à cidadania mais plenos que eu já tive a
oportunidade de presenciar e fazer parte. A sugestão para esse estudo partiu do
prof. Jacó Guinsburg, mestre e amigo desde os tempos em que fiz teatro na USP
na década de setenta. Transformá-la em livro foi uma consequência natural para
conseguir que uma história de tamanha importância pudesse sair das estantes da
academia e ser lida por mais gente. O livro é fruto, por diversos motivos, de
uma longa espera de onze anos e pensando agora acaba nascendo num momento
bastante especial.
Qual a importância de
projetos como os Núcleos de Artes Cênicas do Sesi e, do seu ponto de vista, por
quê não vemos mais ações parecidas acontecendo da parte dos governos e
entidades empresariais?
Sônia Machado de
Azevedo: Essa é uma
pergunta sobre a qual eu poderia falar durante horas a fio como sabem todos os
que me conhecem. Um projeto modelar como o dos núcleos tem baixo custo e
incomensurável benefício pois exige apenas uma pessoa de teatro acolhedora o
suficiente para navegar nos sonhos dos que chegam e um espaço para abrigar
essas histórias que nascem em forma de cena buscando encontros com suas platéias,
contato humano, visibilidade e reflexão.
Um serviço como esse pode ser oferecido
gratuitamente realizando a verdadeira inclusão de todos os que desejem
participar dele. Por que então não se expande por todo o pais das mais
diferentes formas?Quando defendi a tese acreditei que até mesmo dentro do SESI
tal trabalho pudesse se espalhar pelo Brasil afora através da enorme rede que
essa entidade possui em todo território nacional. Isso não aconteceu e meu
doutorado não teve na época nenhuma repercussão na entidade. A expansão desse
serviço gratuito era meu sonho e o sonho de toda a minha equipe. Brincávamos
que cada um de nós podia começar a escolher o estado e cidade em que gostaria
de morar para instalar o serviço que cresceria sem parar....Fomos muito ingênuos....
Acho que o sonho de ver toda e qualquer pessoa fazendo teatro sempre
permanecerá como um desejo para nós que vivemos nossa vida nesse lugar poético
e conhecemos na carne sua importância.
A senhora ainda
participa do projeto? Como andam os Núcleos de Artes Cênicas do Sesi hoje?
Sônia Machado de
Azevedo: Desde o
final do ano de 2008 não estou mais no SESI e, apesar de manter contato com
muitas pessoas da minha antiga equipe não saberia dizer o quanto permanece, se
permanece e o quanto se modificou desde minha saida repentina. Sei apenas que
muita coisa mudou, não sei em que direção...
No livro, a senhora
cita diversos exemplos e casos de projetos e indivíduos cujas vidas foram
transformadas pela experiência. Gostaria que citasse, dentre os episódios que
presenciou, aqueles que foram os mais marcantes para a senhora.
Sônia Machado de
Azevedo: Vidas transformadas
pela experiência. Todas as nossas vidas foram e continuam sendo transformadas
rumo ao infinito de cada um de nós: os alunos, o nosso público, os nossos
homens e mulheres de teatro trabalhando dia e noite com uma paixão sem limites.
E eles continuam, espalhados por ai com um brilho ardente nos olhos porque isso
é a vida prá todos nós e para todos os que se aproximavam dos Núcleos: uma
convivência olho no olho, na escuta do outro e de sua vida, numa conversa
inacabável que continua quando nos encontramos passados tantos e tantos
anos...no meio do livro escrevi algumas histórias que marcaram essas
trajetórias cercadas de amor, susto e afeto. O avô que levava o neto para as
aulas e de repente se perguntou se não poderia ele também, já idoso fazer
teatro. E passou a fazer. O menino que vinha de longe a cavalo para assistir as
aulas, depois de trabalhar o dia todo carpindo no sitio e na volta para casa
conversava com as estrelas. A enfermeira que saia do hospital e ia para as
aulas e se sentia cada vez mais viva. O estivador que saia das aulas e ia para
o trabalho madrugada adentro feliz por respirar, apenas respirar o ar da noite
após a aula. O menino que nunca havia entrado num teatro e de repente descobre
a vida dos bonecos pequeninos que conversam com ele nos finais de tarde antes
da noite chegar. A experiência com o outro no teatro expande os horizontes das
nossas vidas pelo convívio com tantas diferenças e por nossa aceitação do fato
de que somos todos apenas pessoas, únicas e imensamente belas simplesmente por
essa unicidade incontestável. Essa, eu penso, foi a descoberta de todos nós e
que nos acompanhará para sempre, como um presente imaterial.
Certa vez os adolescentes de uma comunidade
próxima a um dos nossos teatros xerocaram ingressos que eram distribuídos
gratuitamente para assistir um espetáculo, o que causou inevitável superlotação
e atropelo. O que fazer? Como lidar com essa paixão? Claramente havia nesse ato
um enorme desejo, uma grande necessidade de viver aquela experiência. De outra
vez nesse mesmo lugar jovens tentaram invadir o teatro pulando pelos muros do
SESI porque os ingressos haviam acabado e o teatro estava lotado. O que significa
isso? E me lembro de um meu entrevistado que hoje é iluminador num desses
teatros dizendo que todos os seus amigos de infância estavam mortos. Muitas
vezes eu penso com certeza que o teatro salva as pessoas de várias maneiras,
mas literalmente também. E pensava, sigo ainda pensando o que é que fazemos com
os nossos jovens? Sufocamos seus desejos, assassinamos os seus melhores sonhos
e apequenamos suas almas, sua vontade de um mundo melhor, de um novo mundo
possível com menos desigualdade, com mais prazer e alegria. É isso? Cruel
demais. E penso naqueles adolescentes cheios de vida, a maioria deles com seu
dia a dia muito difícil que lutavam por um ingresso nas filas que se formavam
nas tardes e noites de teatro. Penso em suas vidas, nas vidas dentro dos
teatros e se ainda estão vivos. A experiência desses encontros ampliou e muito
o sentido das nossas vidas com um poder, sem exagero eu diria, avassalador.
Acho que cada história, de cada um de nós, de todos que passaram por nós, em
sua incrível diversidade. e que se tornaram teatro falam de dor e amor do modo
mais potente; e também de gentileza entre humanos, coisas tão em falta na
sociedade atual tão cheia de julgamento, repressão e ódio.
Seu livro é testemunho
incontestável da importância da educação de arte e do teatro como instrumentos
formadores e transformadores sociais, principalmente, no que diz respeito a
cidadania e bons cidadãos. Vivemos dias estranhos em que grupos e indivíduos
costumam se levantar contra projetos sociais e reduzir a relevância do ensino
de artes nas escolas e junto às camadas mais pobres da população. O que tem a
dizer em resposta a tais argumentos, baseando-se na sua própria experiência?
Sônia Machado de
Azevedo: Vivemos
sim dias muito estranhos. E eu me pergunto quando tudo isso começou ou onde se
ocultava desde os tempos terríveis da ditadura que vivi e que agora se
manifesta na prática: essa total e catastrófica inversão de valores que está
destruindo os sonhos das pessoas e transformando suas vidas num inferno sem
saída, num dia a dia mecânico desprovido de real valor, numa competição sem
fim, numa ambição e agressividade desmedidas.
Para que ou por que se nasce afinal? Por que somos seres tão lindos,
dotados de sentidos e percepção quase mágicos que nos situam num mundo cheio de
possibilidades e modos diferentes de passarmos nossos dias, nossos anos, nossas
curtas vidas nessa terra? Como sermos felizes, simplesmente sem ferir nossos
semelhantes, sem impedi-los de ter uma vida plena e talvez até mesmo bela? Não
somos máquinas de produzir bens de consumo, não somos consumidores de coisas
das quais, de verdade não precisamos, não vivemos para trabalhar e sim
trabalhamos para viver. Evidente que todos que vivemos nossa vida nesse
território demarcado pelos fazeres artísticos estamos nos perguntando no Brasil
de agora: o que está acontecendo? Pois se as artes e a vivência artística, como
fazedores e como público, nos dimensionam como pessoas e cidadãos mais
completos em si mesmos, se as experiências imateriais são, comprovadamente,
fundamentais para a sociedade então o
que? Por que? O que é que de fato mora na insistência de nos pensarem robôs a
quem se deve apenas ensinar a apertar botões e calar a boca? Acho tudo isso
terrível e as respostas que tenho no momento não caberiam aqui. Passeio entre a
esperança na continuidade do meu/nosso trabalho de educação informal, nesse
trabalho que é meu desde que me compreendo por gente ( e que salvou a minha
vida) e em sua importância e o total desencanto com aqueles que detém o poder
de interferir num território tão importante como esse, o da educação através da
arte. Estou tomada por uma indignação sem tamanho. E como sempre os que
sofrerão com tudo isso são exatamente os que mais precisariam desse olhar
humano que só as artes da presença parecem trazer, os mais pobres, os que não
tem nenhuma saída na realidade cada vez mais estreita de suas vidas. Há um
depoimento lindíssimo que colhi e que começava assim:." de onde eu vim ou
se era bandido, ou se era polícia; eu fui o único que me salvei....todos os
meus amigos de infância estão mortos."
Mais que um estudo
sociológico ou trabalho de campo, o livro é um testemunho da importância e do
papel transformador do teatro e das artes na sociedade. Afinal, você participou
ativamente do projeto, sendo também protagonista da história. É o tipo de
experiência que, imagino, acaba tendo impacto sobre quem participa. É possível
descrever a importância de seu trabalho junto aos Núcleos em sua carreira e até
se, de alguma forma, a experiência, o convívio e o retorno disso tudo tiveram
influência sobre você, como mestre e educadora?
Sônica Machado de
Azevedo: Posso
dizer que a experiência com os Núcleos de Artes Cênicas do SESI e meu trabalho
em seus teatros iluminou um lado desconhecido da minha alma ao me apresentar a
verdadeira cidade e estado em que nasci com suas periferias e favelas, com suas
cidades do interior; um mundo de verdade não aquele romantizado nas telas da
televisão, um mundo diverso e denso em cores, credos e maneiras de viver que eu
desconhecia. Sinto-me como alguém que teve a sorte de herdar, nessa viagem
intensa que durou dezessete anos, invisíveis tesouros que, por mais que eu
divida continuam a crescer dentro de mim; tornei-me mais corajosa, mais simples
no modo de viver nesse mundo louco, mais humilde porque a vida é frágil e
perigosa e porque ser gente é lindo só quando se respeita e se é respeitado e
quando se conhece a liberdade. Conheci a verdadeira compaixão porque olhar a
realidade com os olhos de outra pessoa tentando assim conhecer novos pontos de
vista é um duro e denso aprendizado que não cessa nunca. No Brasil de hoje às
vezes penso que aqueles que querem tirar a arte do ensino gratuito ignoram esse
universo de que trato, porém, na maioria do tempo, penso exatamente o
contrario: eles sabem que a prática da liberdade advinda da criação e da
vivência artística conduz ao caminho sem volta da consciência de si, de uma
melhor auto-estima e da consciência crítica e consequente tomada de posição
frente à realidade. E isso não interessa. Interessa que as coisas permaneçam
como estão, melhor ainda que regridam aos tempos em que cada um sabe o seu
lugar e permanece em sua "casta". A artista que mora em mim nunca se
separou da professora de artes; conheço uma vida interior rica, alargada,
preenchida de muitos rostos, vozes e infindáveis histórias que fazem parte da
minha trajetória, isso me torna uma pessoa mais atenta na escuta de meus alunos
e no cuidado com suas experiências. Sou a cada dia maior por dentro (esse é o
melhor modo que encontro de explicar) mais forte e cuidadosa porque conheço e
reconheço a dor e a miséria invisíveis à maioria das pessoas e ao mesmo tempo a
infinita força de luta do ser humano na busca por vidas que tenham sentido em
si mesmas, no contato com esse mundo amplo e imaterial. Agradeço a oportunidade
dessa entrevista e espero que Campo feito de sonhos possa ajudar a pensar a
importância das artes cênicas na vida dos cidadãos e das cidades desse nosso
imenso país. Esse livro é minha declaração de amor, uma profunda e definitiva
declaração de amor ao teatro e sua força, e a todas as pessoas que me ajudaram
a construir um trabalho que continua a se expandir nos nossos filhos, nos
filhos dos nossos filhos rumo a um futuro melhor. Preciso – mais que nunca –
acreditar que sim.
Serviço:
Campo feito de sonhos:
Os teatros do Sesi
Autor: Sônia Machado
de Azevedo
Editora Perspectiva
354 páginas