Compêndio do êxtase
divino
Com acabamento gráfico
belíssimo e pesquisa digna de sua importância, finalmente chega às nossas
livrarias a primeira edição brasileira das Cantatas
de J. S. Bach, de Alfred Dürr.
Por César Alves
Segundo Lewis Thomas (1913-1993), “musica é
nosso esforço para explicar a nós mesmos o funcionamento de nosso cérebro”. O
argumento tenta explicar o êxtase experimentado – mesmo em se tratando dos
ouvintes não familiarizados com música erudita – durante a execução das
composições de J. Sebastian Bach. Segundo o médico, biólogo, escritor e poeta,
entre as diversas atividades que exerceu, “quando ouvimos Bach, ouvimos a
manifestação da própria mente humana”.
Sendo o cérebro humano morada de nosso sentido
de existência, a mente – que também pode ser traduzida por alma, conforme o
gosto do leitor – é o templo filosófico intimo e interior do humano como
indivíduo, onde a razão científica e a graça religiosa oram juntas e, na musica
– seja sacra ou profana –, mesmo os mais racionais dos materialistas, entre os
homens, entram em comunhão com o que talvez não encontre uma tradução melhor
além de divino. Para Lewis, J. S. Bach não apenas comunica-nos a nós mesmos
como indivíduos, como também, dentre todos os grandes compositores da história,
foi quem melhor traduziu nossa civilização como espírito coletivo.
Leigo que sou – há gente muito mais gabaritada
do que eu para explanar sobre Lewis Thomas e J. S. Bach –, minha interpretação
pode ser um disparate pretensioso ou quase uma ofensa aos argumentos de Lewis
em defesa de seu compositor favorito. Embora não seja de toda sem sentido.
Conta-se que, certa vez, ao ser questionado
sobre que mensagem ele enviaria a uma possível civilização, distante no tempo e
no espaço, para exemplificar o que a raça humana tinha de mais gracioso e belo,
sem pestanejar, teria respondido: “Eu enviaria toda a obra de Bach”. Sua
sugestão foi acatada e, em 1977, junto com a Voyager 1 – atualmente o objeto de
fabricação humana mais distante a vagar no universo –, seguiu um disco dourado
que deveria apresentar nossa espécie a possíveis outras civilizações
alienígenas, incluindo o compositor das peças que compõem Cantatas, livro
assinado pelo musicólogo Alfred Dürr (1918-2011), que finalmente ganha edição
brasileira graças ao excelente projeto da editora da Universidade Sagrado
Coração (Edusc).
Publicado originalmente em 1971, As Cantatas de
J. S. Bach, desde o início, atraiu a atenção não só de especialistas e músicos
eruditos, como também do grande público. Fruto de anos de dedicação meticulosa
de seu autor, a obra reúne parte considerável da produção do maior compositor
alemão do período Barroco.
Considerado um dos maiores especialistas na
obra do autor de peças inconfundíveis para qualquer um que possua um aparelho
auditivo – tanto profundos conhecedores quanto leigos –, de Jesus Alegria dos
Homens e Tocata em Ré Menor – ainda há teorias conspiratórias que põem em
dúvida Bach como verdadeiro autor da última, é bom lembrar –, o berlinense
Alfred Dürr debruçou-se sobre o tema de forma aprofundada, resultando num
trabalho ainda inigualável e estudo indispensável para musicólogos, músicos,
admiradores da musica clássica e erudita, mas nem por isso, incompreensível
para leigos.
Obra de valor incontestável, a versão
brasileira que acaba de ser lançada, não foi missão das mais fáceis e demandou
dedicação apaixonada e trabalho exaustivo de todos os envolvidos. A idéia de
traduzir o livro de Dürr surgiu em 2002, mas o projeto ficou parado até 2010 e,
entre aprovação do projeto pela Lei Rouanet, captação de verbas, revisões,
formatação estética e adaptação, o mais fiel possível, do original em alemão
para o português, tendo como objetivo único nada abaixo da perfeição, até que o
calhamaço de cerca de 1.400 páginas chegasse até os leitores brasileiros,
representou uma verdadeira Via Sacra. O resultado – e o leitor pode conferir
por conta própria –, certamente, valeu a pena. A belíssima edição da Edusc,
desde já, merece lugar de destaque entre os melhores lançamentos do ano.
Considerado um dos maiores monumentos da musica
ocidental, o conjunto das Cantatas de Bach está diretamente ligado ao legado
luterano. Durante sua vida, J. S. Bach compôs mais de mil peças musicais,
buscando inspiração e apropriando-se dos mais diversos gêneros musicais da época,
do folclórico ao religioso, de temas sacros ao materialismo profano, mais de
dois terços de sua produção, dedicado a Igreja Luterana.
Na verdade, não há como separar Bach do
perpetrador das Reformas, Martinho Lutero, apesar do quase um século e meio que
separam o nascimento do primeiro, depois da morte do segundo. Também musico,
foi Lutero quem redefiniu o papel do canto nas congregações cristãs, até aqui
obrigatoriamente em latim ou grego, ao permitir a composição de cânticos na
língua local para que fossem compreendidos pelos fies das igrejas, além de
fazer a primeira tradução para o alemão do texto da Bíblia – o que lhe valeria
a excomunhão.
Gênio
precoce, aos 14 anos, J. S. Bach compôs sua Cantata Número 4, justamente
inspirada no cântico Christ Lag In Tades Bonden (Cristo Está nos Domínios da
Morte), composto por Lutero.
Tido como o maior nome do Barroco Alemão e
Cânone Maior da Musica Ocidental, pode parecer estranho que Bach não tenha
gozado de grande fama em vida. Era pouco conhecido fora de seu país e, para se
ter uma idéia, quando veio a falecer, aos 65 anos, em 1750, sequer foi
considerado importante para ter uma lápide com seu nome, ao ponto de ser
preciso escavar cerca de 47 covas, em 1894, para encontrar seus restos que,
desde 1950, descansam na Igreja Thomaskirche, em Leipzig, à qual dedicou sua
vida.
Serviço:
As Cantatas de J.S.
Bach
Autor: Alfred Dürr
Editora: Edusc
1.400 páginas
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