Barato da Literatura
Quando Vício
por César Alves
Os amantes da literatura já devem ter
experimentado a sensação de que o hábito de ler e pesquisar certos autores e
obras, muitas vezes, se aproxima do vício. Descobrir um autor e sentir a
necessidade de ler e reler toda a obra mais de uma vez é quase como encontrar
aquela fórmula perfeita, lícita ou não, para os males da existência – com o
perdão da filosofia barata. Para os que sofrem de tal dependência, a livraria,
biblioteca ou estante de livros pessoal é feito farmácia, o sebo, uma boca de
fumo, onde encontra obras não-ilícitas, mas tão raras que são como se
proibidas, depois de anos fora das prateleiras. O atendente da livraria, seu
farmacêutico; o alfarrabista, seu traficante ou dealer. Existem, inclusive, aqueles que despertam a curiosidade e,
quando finalmente experimentamos, não bate ou dá barato! Livros feito placebos;
autores que são feito cocaína batizada ou “fumo palha”.
Assim como o viciado em drogas, o dependente do
verso e da prosa, mesmo percebendo o mal que o mergulho no universo de certos
autores lhe causa, sente o desejo irresistível de ir além. Não havendo clínica
de reabilitação, nem um programa dos sete passos para retroceder ao Paraíso da
Ignorância, o leitor segue em busca de novas doses de psicotrópicos
filosóficos, estimulantes existenciais, misturando doses de tramas,
personagens, ficção, realismo, fantasia e fantástico, com formas narrativas,
verbais, experimentos estético-textuais, num Breaking Bad químico-literário que só acaba com a inevitável
overdose das letras, num quarto solitário ou laboratório clandestino de
meta-anfetaletras.
Pedindo perdão pelo enorme nariz de cera acima
– entenda como exemplo de como bate o barato das letras no leitor que também
escreve, antes que eu fuja do tema, vamos logo ao que interessa.
Se toda aquela minha conversa fiada que abre o
texto tem algum sentido, não é exagero dizer que, para alguns leitores, obras e
autores, títulos e nomes escritos nas bordas dos livros, dispostos nas
estantes, são como uma variedade de fármacos e substâncias, nas prateleiras de
uma drogaria ou nas mãos de um traficante dos lados selvagens da paisagem
urbana.
Tal analogia pode ser o que baliza a trama de Dostoiévski-Trip, peça de um único ato,
escrita por um dos mais celebrados nomes da literatura contemporânea russa,
Vladímir Sorókin, e publicado recentemente no Brasil pela Editora 34.
Com tradução e posfácio de Arlete Cavaliere, a
obra é ótima introdução ao universo de Sorókin.
Protagonizado por sete personagens – cujos
nomes não sabemos, assim como o lugar onde a historia se passa – que aguardam a
chegada de um misterioso fornecedor, o texto abre com os diálogos inevitáveis
que a impaciência costuma impor aos desconhecidos. Não demora e o leitor vai
sacar que todos ali são como o personagem de uma velha canção do Velvet Underground, e estão waiting for their man. Sim, todos junkies! Viciados na droga da
literatura. O traficante que eles esperam, negocia uma variedade de substâncias
ilícitas que costuma trazer em uma maleta. São cápsulas com doses de William
Faulkner, Franz Kafka, Tolstoi, Gogól, Celiné, Sartre e o que mais o cliente
precisar.
Sim, a citação é intencional, os personagens
estão a procura de um autor ou Sete Viciados à Procura de um Autor – novamente,
pedindo perdão pelo trocadilho infame.
Mas essa é apenas a primeira das muitas sacadas
interessantes e cômicas do livro. Como viciados que esperam o fornecedor que
está atrasado e tentam evitar pensar na síndrome de abstinência, eles conversam
para passar o tempo e evitar pensar no pior cenário: o de que ele não apareça.
Como todo viciado, sem a substância de seu vício, o assunto não é outro senão
as drogas, suas experiências com ela e seus efeitos.
São justamente os diálogos entre os cinco
homens e as duas mulheres e suas histórias e experiências com substâncias de
muitos dos nomes mais celebrados da literatura universal que compõem a primeira
parte da narrativa, que empolga, envolve e surpreende o leitor, principalmente
com a chegada do negociante que os personagens aguardam. Como sempre, em sua
valise o homem tem tudo, mas sugere aos clientes uma novidade: um novo produto
de nome Dostoiévski!
Vou parar por aqui para não estragar o barato
da viagem, mas a experiência lisérgica, em que os personagens são transportados
para uma passagem conhecida de O Idiota, que culmina em uma terrível bad-trip é fantástica.
Carregada de humor, sarcasmo, violência,
pornografia e escatologia, a obra de Sorókin não é o tipo de narcótico para
estômagos fracos, é sempre bom avisar. Opositor assumido de Putin, Vladímir
Sorókin surgiu na cena underground moscovita dos anos oitenta. Mas, embora
reconhecido mundialmente desde 1985, quando seu romance A Fila foi publicado na
França, o autor foi censurado em seu país e seu primeiro livro na terra pátria
só saiu em 1992, uma coletânea de Contos Escolhidos.
Entre seus diversos romances e peças, merecem
destaque O Dia do Opríchnik (2006), a
trilogia Gelo (2002), O Caminho de Bro
(2004) e 23000 (2005).
Serviço:
Dostoiévski-Trip; Autor: Vladímir Sorókin; editora: Editora 34
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