A Poesia Passeia de
Bonde
20 Poemas para Ler no
Bonde, livro de estréia de Olivério Girondo, é finalmente publicado no Brasil,
em edição bilíngüe e ilustrado com fotos de Horacio Copolla.
Por César Alves
O poeta tem fome de inspiração, seus olhos
devoram a realidade que mastiga à dentadas, engolindo-a num bolo digestivo de
imaginário, que digere em criatividade e regurgita em verso e prosa. O viajante
tem fome de estrada, seus pés devoram milhas percorridas, engolem paisagens,
digerem experiências e regurgita uma mistura da necessidade irresistível de
trilhar novos caminhos com a saudade de lugares e pessoas para trás deixados
que, de tão intensa, só perde para o imenso desejo de seguir viagem.
Com o perdão do filosofar barato que introduz o
texto, caro leitor, é como um amálgama do artista com o viajante que os 20 Poemas Para Ler no Bonde, de Olivério
Girondo, nos encantam.
Lançado pela Editora 34, a tradução de Fabrício
Corsaletti e Samuel Titan Jr corrige uma das muitas lacunas existentes nas
prateleiras de nossas bibliotecas e livrarias de edições nacionais de títulos e
autores importantes da literatura produzida na América Latina. Em se tratando
de expoentes das vanguardas, então – como é o caso de Olivério Girondo –, são
tantos buracos que beiram se tornar um imenso vácuo.
Expoente máximo do Modernismo argentino,
Olivério Girondo é também considerado por especialistas como aquele, dentre os
poetas das vanguardas latino-americanas, que melhor dialoga com a produção
brasileira, principalmente, Oswald e Mário de Andrade.
Originário de uma família abastada de Buenos
Aires, muito cedo o autor se deu conta de que as facilidades financeiras que
seu berço lhe garantia não poderiam ser desperdiçadas com uma existência fútil,
esnobe e cômoda. Sendo assim, ainda muito jovem decidiu tirar proveito de sua
condição para abraçar a vida como experiência e saciar-se do banquete das
descobertas.
Vivendo de forma quase nômade entre a Argentina
e a Europa, apesar de seu espírito boêmio, Girondo dedicou-se de forma
apaixonada aos estudos, lendo tudo o que estivesse ao alcance, com especial
devoção à literatura e artes em geral. Aqueles eram os anos convulsivos de
horror, quando as nações do mundo entravam no primeiro dos dois conflitos
mundiais que modelariam a história do século que se iniciava; espanto e
fascínio, diante da promessa de possibilidades que as novas invenções e
descobertas científicas e tecnológicas prenunciavam; e pulsão criativa,
experimental e provocativa, conforme apontavam as vanguardas artísticas
européias. Um século novo, exige uma arte também nova, era o que diziam ou
pareciam dizer.
Ora, para um garoto com aspirações artísticas e
inclinado ao inconformismo, deve ter sido como aquele senhor aposentado, ex-hippie,
que hoje não confia em ninguém com menos de sessenta, quando ouviu ainda
adolescente alguém pregar: “Não confie em ninguém com mais de trinta!” Ou o
garoto suburbano que, em meados da década de 1970, ouviu Never Mind The Bollocks. Here is The Sex Pistols e concluiu: “Eu
também posso fazer isso!”
Citações pop e anedotas geracionais à parte,
sem medo do afogamento o jovem poeta então saltou de seu trampolim para
mergulhar profundamente nas águas do novo, onde a vida artística realmente
estava fluindo, num maremoto de ousadia promovido pelas ondas tormentosas dos
dada, futuristas, cubistas e surrealistas.
Os 20 Poemas Para Ler no Bonde apresentam um
poeta em sintonia com seu tempo e, embora ainda em formação, completamente
adaptado às novas propostas criativas de sua época. Mas também, oferecem o
olhar do andarilho experiente e, ainda assim, fascinado com a beleza das coisas
mais simples, atos e fatos corriqueiros da vida cotidiana, o gigantesco
multiverso guardado no micro, imperceptível aos que só tem olhos para o macro;
mas claro como o dia para aqueles dotados da capacidade de enxergar além da
física dos corpos e das estruturas do concreto.
Todos escritos durante suas andanças por
cidades como Buenos Aires, Paris, Veneza e Rio de Janeiro, cada poema convida a
vivenciar com o viajante as experiências de sua passagem, enquanto o poeta
desperta os sentidos, com saboroso lirismo inspirado no caminhar das mulheres,
o olhar de desafio da madura e o rosar das bochechas da virgem inocente, em
resposta ao mesmo flerte; a cacofonia das conversas desconexas entre amigos
ébrios; a máquina motorizada que segue em descompasso e, mesmo com o ronco de
sua artificialidade, não quebra a naturalidade com que transcorrem os dramas
pessoais dos que passam, vão ou ficam e dos que bebem, conversam, namoram;
assim como a cidade que, aos pouco, toda a natureza cobre, em harmônica
desarmonia acelerada.
Publicado originalmente na França em 1922, o
livro só saiu na Argentina em 1925. Um ano antes, Girondo retornou à Buenos
Aires, onde ajudou a agitar o modernismo local, como colaborador do órgão
difusor das vanguardas hispano-americanas, a revista Martín Fierro (1924-1927)
e consagrou-se como poeta e autor de diversos livros, com destaque para
Calcomanias (1925), Espantapájaros (1932) e Persuasón de los dias (1942), que
merecem artigos próprios para discorrer a respeito.
Além de bilíngüe e ilustrada, a edição
brasileira de 20 Poemas para Ler no Bonde conta com reproduções de trabalhos de
Horacio Coppola, figura central da fotografia latino-americana, um dos
fundadores do Cineclube de Buenos Aires, em 1920, que, em 1932, durante viagem
à Alemanha, travou contato com a Bauhaus e a fotógrafa Grete Stern, com quem
veio a se casar. Em 1935, o casal promoveu a primeira exposição de fotografia
moderna na Argentina.
Antes tarde do que nunca, a feliz chegada do
livro de estréia do poeta argentino, como primeiro título dele publicado no
Brasil, talvez sinalize como ponto de partida para uma possível reedição de sua
obra, para o deleite dos leitores brasileiros.
Para ler no bonde, no ônibus, no metrô, no taxi
ou no avião.
Trecho:
“A cidade imita um
papelão uma cidade de pórfiro. Caravanas de montanhas acampam nos arredores. O
Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira o Pão de Açúcar e seu teleférico
que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel (...)”.
Serviço: 20 Poemas
Para Ler no Bonde. Autor: Olivério Girondo. Tradução: Fabrício Corsaletti e
Samuel Titan Jr. Editora 34. 112 páginas. Fotografias de Horácio Coppola.